Transformando suor em vinho

Se Jesus Cristo transformou a água em vinho, os atletas do ‘Time do Padre’ transformaram seu próprio suor na bebida.
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Anivaldo, Ginho, Gerson, Chicão, Pimentel e Bebeco (em pé); Caetano, Maíca, Nelo, Juquinha, Nilo e Aldinho (agachados) foram os responsáveis pelo primeiro triunfo da história do Juventus em um Estadual © Vilmar Chiodini

Por Henrique Porto

Nesta semana que antecede a estreia do Grêmio Esportivo Juventus em mais uma edição de Campeonato Catarinense, vamos recordar como foi a primeira vitória do 'Time do Padre'. O relato foi extraído do livro 'A primeira vez do Moleque', de minha autoria. Então, entre na máquina do tempo e boa viagem ...

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S. Miguel do Oeste, 28 de abril de 1976 – Jogo 08, Guarani 0x1 Juventus

A Família Martha de Freitas possui uma rica história no futebol gaúcho, graças aos irmãos Alcy, Alfeu e Alcindo. Destes, o mais conhecido é o caçula, Alcindo, atacante nascido em 1945 e conhecido pela alcunha de ‘Bugre Xucro’. Trata-se de um dos grandes ídolos da história gremista, eternizado por ser o maior artilheiro do Estádio Olímpico, graças aos 129 gols anotados em 186 jogos disputados no implodido templo tricolor. No total, defendeu o ‘Imortal’ por onze temporadas, balançando as redes adversárias em 231 ocasiões nas 377 partidas que realizou. Ainda teve o privilégio de atuar com Pelé, em 1973, no Santos, e com Tostão, na Copa do Mundo de 1966, pela Seleção Brasileira.

O mais velho da turma, Alcy, nasceu em 1933. Para muitos é considerado o melhor dos três. Ao contrário de Alcindo, Kim era defensor e fez história no rival Internacional, entre os anos de 1958 e 1963. Teve sua carreira abreviada em virtude de um deslocamento de retina, ocorrido em 1964, quando defendia as cores do Rio Grande (RS). Coincidência do destino, esta foi a mesma lesão que afastou dos gramados o craque Tostão, outrora companheiro de seu mano na seleção canarinho. Após, se dedicou à carreira de técnico, caminho também seguido pelo irmão do meio, Alfeu, que herdou o apelido de Kim fora das quatro linhas.

Nascido em 1936, Alfeu era um atacante com forte presença na área, habilidoso e goleador. Jogou cinco partidas pela Seleção Brasileira, em 1960, sagrando-se campeão Pan-Americano. Em sua carreira, atuou por clubes como Aimoré (RS), Portuguesa (SP) e San Lorenzo (ARG), além da dupla Grenal. Se retirou dos gramado em 1969, quando passou a atuar do lado de fora do campo. Desembarcou em 1976 no extremo oeste de Santa Catarina e vinha realizando uma campanha surpreendente à frente do Clube Esportivo Guarani. Em sete rodadas, a equipe de São Miguel do Oeste somava cinco empates, um triunfo e apenas um revés. E foi neste momento que a história dos Martha de Freitas se cruzou com a do Grêmio Esportivo Juventus.

Os donos da casa ainda celebravam o triunfo sobre o Paysandu e estavam invictos atuando em seus domínios, o Estádio Padre Aurélio Canzi, aonde eram considerados pela imprensa da época como imbatíveis. Isso até encontrarem pela frente o ‘Time do Padre’, na tarde daquele longínquo dia 28 de abril de 1976, uma quarta-feira de sol e frio, data que deveria ser considerada um feriado em Jaraguá do Sul por sua importância esportiva. Alfeu ‘Kim’ Freitas tinha uma preocupação especial para encarar o ‘Moleque’: a falta de efetividade de seu ataque. Pensando nisso, escalou seu onze com Joãozinho; Hamilton, Franco, Maçã e Valmir; Claudiomiro, Valmor (depois Nicanor) e Alcione; Carlinhos, Oreco e César (depois Tião).

Em contrapartida, Hélio Rosa precisava costurar uma colcha de retalhos para levar o tricolor a campo. Wilfrit estava contundido. Russinho suspenso pela expulsão em Palmitos. Ginho não estava cem por cento em suas condições físicas. Bebeco e Gerson atuariam pendurados. Nilo voltava a ser uma opção para a ‘regra 3’, enquanto Nelo era a grande aposta do matuto treinador. A escalação só foi definida no dia anterior, no treino de reconhecimento do local da partida. Mas, como de praxe, Rosa escondeu ela até momentos antes de o balão de couro rolar. “Vamos reforçar a meia cancha e, quando subir ao ataque, devemos ser como um rolo compressor”, afirmava o treinador – de forma evasiva – em entrevista ao Jornal de Santa Catarina.

Entre as opções que tinha, alinhou com Anivaldo no gol; Bebeco, Chicão, Ginho e Pimentel na defesa; Nilo, Maíca (que deu lugar a Pastoril no decorrer do jogo), Gerson e Juquinha na meia cancha; fechando na frente com a dupla Nelo e Aldinho, apostando tudo em sua velocidade. “Com os ordenados em dia, pagamento régio de bichos, inclusive em derrotas, quando a equipe atua bem, caso do jogo em que a equipe sustentou com o Joinville, além de novo alento com a marcação de gols, espera o Juventus voltar do Oeste com um bom saldo de pontos, especialmente para fugir da incomoda posição de último colocado”, anunciava profeticamente a reportagem do jornal A Notícia.

E apoiado nas destacadas atuações de Anivaldo, Ginho e Nilo, o Juventus enfim experimentou o sabor do primeiro triunfo. Tal qual acontecera em Palmitos, o ‘Time do Padre’ pulou na frente do marcador. Foi aos 25’, quando Aldinho acabou derrubado dentro da área e Flares de Souza não titubeou ao apontar a marca da cal. “O meu marcador batia muito. No lance do pênalti, ele me deu um soco que, se acertasse, eu não estaria aqui hoje para contar a história”, relembra o ponteiro. “Eles chamavam ele de Bugre ou Índio, não sei ao certo. Só sei que tentava ao máximo evitar o contato com ele”, conta. A responsabilidade da cobrança caiu sobre Nelo, que não se omitiu. Ajeitou a pelota com carinho, encarou sem medo Joãozinho e cobrou com extrema categoria, convertendo a penalidade em gol, ainda sem ter a dimensão exata do significado daquele tento para a história do clube.

Na volta para o segundo tempo, o Guarani partiu para o ‘tudo ou nada’, acuando o Juventus em seu campo de defesa. Mas o ‘Moleque’, por sua vez, soube manter a tranquilidade e se agarrar na breve vantagem construída. E se na bola não estava dando, o caminho encontrado pelos locais para intimidar o árbitro foi a força. Por volta dos 25’ da etapa complementar uma grande confusão paralisou a partida. Souza não anotou uma suposta penalidade em favor do Guarani, deixando o técnico Alfeu de Freitas descontrolado. Cansado das constantes reclamações, o árbitro expulsou o treinador adversário, fato que gerou uma reação imediata dos atletas. Estes compraram as dores do seu comandante e partiram com o intuito de agredir Flares, seus auxiliares – Pedro Basso e João Koeler – e até mesmo os atletas tricolores, que trataram de permanecer alheios à confusão.

“Deu uma briga enorme entre os jogadores do Guarani e o árbitro, que apanhou muito”, recorda Russinho, que assistiu das arquibancadas ao primeiro triunfo do Juventus na elite do futebol de Santa Catarina. Coube ao comandante da Polícia Militar intervir e garantir a segurança do trio de arbitragem e do próprio Juventus depois de doze minutos de paralização. A partida continuou na sequência, tensa é verdade, mas sem maiores incidentes ou alteração de placar. Ao soar do apito, findando o espetáculo, o ‘Moleque’ enfim conhecia o sabor de uma vitória na elite do futebol catarinense. E ela tinha um gosto muito especial. Se Jesus Cristo transformou a água em vinho, os atletas do ‘Time do Padre’ transformaram seu próprio suor na bebida.

Antes de embarcarem de volta para o município, em uma jornada que duraria mais de vinte horas, adquiriram algumas garrafas de vinho. Assim, a viagem foi uma festa, que congraçou atletas, dirigentes e torcedores. Na chegada a Jaraguá do Sul, uma grande surpresa. Os jogadores foram recebidos como heróis, com um foguetório de saudação e um cortejo de carros seguindo o ônibus da Canarinho desde a chamada ‘Ponte da Divisa’ até o Shallon, local erguido pela diretoria juventina no centro da cidade para se reunir e deliberar sobre o dia a dia do clube. Mas também palco para celebrações, sempre regadas com muita cerveja, esta liberada pelo ecônomo Fidelis Nicoluzzi e servida pelo cortês garçom Xerife.

publicado 6 anos